Artigo sobre Imagem


Afecções dos Signos na Arte:
Diálogos entre Charles Sanders Peirce e Gilles Deleuze
Hermes Renato Hildebrand
Andréia Machado de Oliveira
Resumo
O presente artigo tece algumas relações entre os graus de interatividade nas experimentações artísticas e o processos de semiose (ação do signo). As similaridades entre os conceitos oriundos dessas teorias sustentam-se nos diálogos entre os conceitos de primeiridade, segundidade e terceiridade em Charles Sanders Pierce e os conceitos de ritornelo e signos em Gilles Deleuze. Assim, buscamos aproximar o pensamento desses dois pensadores, Deleuze e Peirce, estabelecendo relações entre seus signos na experiência com a obra de arte.

Palavras-chave: interatividade, graus de interatividade, semiose, redes e arte.
Abstract
This article explores the relationship between the degree of interactivity in
artistic experimentation and its processes of semiosis (sign action). The
similarities between the concepts from these theories hold up in
dialogues between the concepts of firstness, secondness and thirdness in
Charles Sanders Pierce and the concepts of ritornello and signs in Gilles
Deleuze.
Keywords: Interactivity, degree of interactivity, semiosis, networks and art.
            A proposta desse trabalho é apresentar algumas relações entre os graus de interatividade nas experiências artísticas diante do processo de semiose. A teoria sobre os graus de interatividade[1] está fundamentada nos filósofos Espinosa, Simondon e Deleuze, e a teoria sobre redes de conecção e semiose,[2] em Charles Sanders Pierce.  
            A experiência com a obra de arte, com base na observação do fenômeno, dar-se-á a partir dos conceitos de primeiridade, segundidade e terceiridade da filosofia de Peirce e considerando a experiência como  
tudo aquilo que se força sobre nós, impondo-se ao nosso reconhecimento, e não confundindo pensamento com pensamento racional (deliberado e autocontrolado), pois este é apenas um dentre os casos possíveis de pensamento. Peirce conclui que tudo que aparece à consciência, assim o faz numa gradação de três propriedades que correspondem aos três elementos formais de toda e qualquer experiência. (SANTAELLA, p.7, 1987).         
Para Peirce, todo o fenômeno deve ser observado a partir de três categorias fenomenológicas: primeridade, segundidade e terceiridade. Para ele, a observação de qualquer fenômeno deve ser classificada em três faculdades:
A primeira e principal é a qualidade rara de ver o que está diante dos olhos, como se presenta, não substituído por alguma interpretação (...). É esta a faculdade do artista que vê as cores aparentes da natureza como elas realmente são. (...). O poder observacional é altamente desejável na fenomenologia. A segunda faculdade com que devemos armar-nos é uma discriminação resoluta que se pendura como um buldog daquela característica que estamos estudando, (...) A terceira faculdade de que necessitamos é o poder generalizador do matemático que gera a fórmula abstrata que compreende a verdadeira essência da característica em estudo, purificada de toda a mistura adventícia. (PEIRCE, 1983, p.17).
Peirce define signo como “algo que representa alguma coisa para alguém, sob algum aspecto”. O signo é uma estrutura complexa definida por três elementos que se interconectam e que não podem ser analisados separadamente, pois fazem parte de uma relação, são eles: o próprio signo ou fundamento, seu objeto e o interpretante. Peirce comenta que o:
Signo é um Cognoscível, que, de um lado, é assim determinado (isto é, especializado) por algo diverso dele, chamado o seu Objeto, enquanto, por outro lado, ele próprio determina uma Mente existente ou potencial, determinação essa que denomino o Interpretante criado pelo Signo, e onde essa Mente Interpretante se acha assim determinada mediatamente pelo Objeto. (PEIRCE, 1983, p.121).
De fato, o signo e a mente interpretante estão submetidos a um processo relacional. A representação que o signo permite elaborar de seu objeto é uma relação criada a partir de um signo anterior, isto é, o significado de um signo é outro signo, de fato, estamos lidando com o processo de semiose em si. Santaella e Nöth (2003) dizem que a semiótica peirceana não estuda exatamente o signo, mas sim, é a semiose seu objeto de estudo. O que se pode verificar em Peirce quando ele afirma que a Semiótica é “...a doutrina da natureza essencial e das variedades de possível semiose.” (1983, p.135)
 A intenção de representar um objeto é inerente a qualquer signo. Um signo substitui o objeto e só pode existir enquanto tal, enquanto representação realizada em uma mente interpretante. Portanto, um signo representa seu objeto de algum modo e nunca em sua totalidade, tendo a capacidade de representar parcialmente o objeto explicitado por ele na particularidade da mente interpretante.
A Teoria Geral dos Signos é composta por tricotomias, as quais podem ser analisadas conforme as categorias fenomenológicas de primeiridade, segundidade e terceiridade. Essas tricotomias constituem o método semiótico proposto por Peirce. As tricotomias desenvolvidas por ele são:
... a primeira, conforme o signo em si mesmo for uma mera qualidade, um existente concreto ou uma lei geral; a segunda, conforme a relação do signo para seu objeto consistir no fato de o signo ter algum caráter em si mesmo, ou manter alguma relação existencial como esse objeto ou em sua relação com o Interpretante; a terceira, conforme seu Interpretante representá-lo como um signo de possibilidade ou como um signo de fato ou como um signo de razão. (Peirce, 2003, p. 51).
Ao observar os graus de interatividade nas artes e ao relacioná-los às categorias fenomenológicas peirceana, verificamos que existem poucas reflexões a respeito deste tema e que também são poucas as relações da filosofia desse filósofo norte americano com o pensamento de Gilles Deleuze. Vários autores trataram do tema a respeito de Henry Bergson, sobre o movimento, o tempo e suas contribuições para as reflexões filosóficas de Deleuze: Imagem-Movimento (2004) e Imagem-Tempo (2007). Deleuze reconhecia a importância de Peirce ao identificar em sua semiótica um excelente instrumento para superar as práticas descritivas da semiologia desenvolvida a partir dos desdobramentos do estruturalismo e da lingüística de Saussure estabelecidos por Roland Barthes e de Christian Metz. Porém, segundo o próprio filósofo francês, faltava uma espécie de zeroidade entre as categorias fenomenológicas de Peirce para a imanência, a multiplicidade e o processo de criação.           

Primeiridade, segundidade e terceiridade em ritornelos
Comecemos então, muito simplificadamente, retomando as categorias fenomenológicas de Peirce. Para ele, a observação dos fenômenos deve-se munir destas três faculdades. A primeiridade é tudo que está presente na consciência de uma mente interpretante, num determinado momento.  É tudo que está nesta mente, num lapso de tempo. É um fenômeno instantâneo que não pode ser capturado. Quando argumentamos sobre ele, ele se foi. O presente pode ser dito, mas não permanece. Quando pensamos no presente estamos em outro momento que se transforma e, neste novo instante, ele modifica-se. A primeiridade é um sentimento de qualidade.
Na segundidade há um mundo real, reativo, um mundo sensual, independente do pensamento e, no entanto, pensável e que se caracteriza pela ação e reação. Estamos continuamente esbarrando em fatos que nos são externos, tropeçando em obstáculos e coisas reais. O simples fato de estarmos vivos, existindo, significa a todo momento a consciência reagindo em relação ao mundo. Existir é só estar numa relação, resistir e reagir, ocupar um tempo e espaço particulares, confrontar-se com outros corpos. Por fim, a terceiridade “aproxima um primeiro e um segundo numa síntese intelectual, corresponde à camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo”. (SANTAELLA, 1983).
No entanto, Peirce leva a noção de signo tão longe a ponto de que um signo não tenha necessariamente de ser uma representação mental, mas pode ser uma ação ou experiência, ou mesmo uma mera qualidade de impressão. (SANTAELLA, 1984, p.72)
Parece-nos inevitável relacionar a primeiridade, segundidade e terceiridade, em Peirce, com os movimentos do ritornelo em Deleuze e Guattari. Originariamente o conceito de ritornelo é oriundo de um procedimento na música dos séculos XIV a XVI e exprime a ação de retorno que é aplicado em circunstâncias musicais. O termo é utilizado para designar o refrão de madrigais, estribilhos, repetições instrumentais e em composições vocais onde as repetições se apresentam. No entanto, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997) se apropriam do termo e o utiliza para a formação de um agenciamento territorial, ora em direção a ele, ora se instalando nele e consolidando seus componentes, ora dando conta de esvaziá-lo, de se colocar o território em fuga.
Segundo Deleuze e Guattari, há três momentos sucessivos na evolução do ritornelo: no primeiro, o caos é um imenso buraco negro no qual estamos imersos em afetos que não conseguimos discernir, mas somos afetados por um centro frágil e incerto. No segundo, construímos um algo; um em-casa, traçamos um círculo na tentativa de organizar um espaço limitado e seguro, sendo que esse lugar, o em-casa não pré-existe. É algo do buraco negro que se tornou um em-casa. No terceiro, somos lançados para fora desse lugar, do em-casa a fim de que possamos construir novos em-casa. O ritornelo produz e é produzido pelos agenciamentos que constituem os territórios:
Sublinhou-se muitas vezes o papel do ritornelo: ele é territorial, é um agenciamento territorial. [...] Ora se vai do caos a um limiar de agenciamento territorial: componentes direcionais, infra-agenciamento. Ora se organiza o agenciamento: componentes dimensionais, intra-agenciamento. Ora se sai do agenciamento territorial, em direção a outros agenciamentos, ou ainda a outro lugar: inter-agenciamento, componentes de passagem ou até fuga. E os três juntos. Forças do caos, forças terrestres, forças cósmicas: tudo isso afronta e concorre no ritornelo. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.118)
Os dois filósofos vão constituir, assim, uma tríade envolvendo o conceito de ritornelo. Tríade essa que apresenta três movimentos que são, ao mesmo tempo, semelhantes e distintos. Na arte, o ritornelo torna-se visível, ou melhor, a arte é um ritornelo. É um processo que se inicia por contágio com o material, com a atração dos elementos e deixa-se levar, por um querer se entregar. Depois disso, por uma necessidade de se individuar, de se atribuir forma, de se construir algo e, enfim, de se abrir para um coletivo, solicita novamente uma saída. A arte somente ocorre em um processo de desconstrução, construção e reconstrução em que não se pode ter um resultado final a ser atingido.
Na instalação “Ão” (1981) do artista Tunga, vivenciamos uma ação do ritornelo quando somos levados a outras dimensões espaço-temporais, a outros territórios existenciais. Há um movimento cíclico sonoro na música “Day and Night” de Frank Sinatra que é tocada de maneira ininterrupta e com as imagens mostradas de forma contínua na projeção de um caminho em um túnel sem fim, em um filme preto e branco de 16 mm que roda ininterruptamente sem início e fim. O espectador é absorvido pelos elementos da obra, forma o seu em-casa com a obra e, após construir o conjunto obra-tecnologia-homem, abre-se a desterritorializações.
Os três momentos do ritornelo: infra-agenciamento, intra-agenciamento e inter-agenciamento, podem ser relacionados com as categorias de Peirce. O infra-agenciamento é o movimento de agrupamento para se dar forma a algo, onde alguns elementos de um plano pré-individual se direcionam e se aproximam pelas qualidades, concentrando-se em um foco para enfrentar as forças do caos; nem tudo afeta tudo, há uma atração, uma tendência, um contágio, algo que produz uma consistência no momento presente. O infra-agenciamento é o primeiro momento do ritornelo e se aproxima da primeiridade no sentido de ser o momento presente, por uma mera qualidade que não se pode discernir.  Já o intra-agenciamento, segundo momento do ritornelo, é como os componentes conectados se agenciam e se organizam, consolidando uma forma, um indivíduo com contorno poroso, um repouso amigável do caos. Deleuze e Guattari chamam de um em-casa como conexões que se consegue estabelecer com o caos produzindo um determinado território. Referindo-se a segundidade, no intra-agenciamento estabelecem-se relações com o objeto em territorializações, constituem-se as relações entre os objetos e seus signos. O inter-agenciamento, terceiro momento, é a necessidade de devir do território, o que, paradoxalmente, consolida-se em conjuntos e abre-se a outros agenciamentos; um movimento de desterritorialização. A terceiridade se manifesta como um pensamento em signos que pode ser compartilhado, socializado.
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